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"Vida longa aos dias de sol!"

domingo, 4 de dezembro de 2016

PELO ESCURO DOS OLHOS TEUS



"Quando a luz dos olhos meus
E a luz dos olhos teus
Resolvem se encontrar

Ai, que bom que isso é, meu Deus
Que frio que me dá
O encontro desse olhar” [1]

É comum ouvirmos frases românticas de amor associadas a olhos e olhares. O sujeito enamorado percebe nos olhos da pessoa amada a segurança de ser correspondido ou a ameaça da perda, decifrados ali, na ausência de qualquer palavra. Olhos se mostram meios poderosos de comunicação, onde a mensagem se transmite mesmo sem querer.

Pesquisadores americanos estudam há anos a comunicação involuntária pelos sinais da face. O professor Paul Ekman [2] da Universidade da Califórnia em São Francisco (UCSF), pesquisador e consultor desde políticos a animadores dos estúdios de desenhos Pixar, foi capaz de catalogar quarenta e três tipos de movimentos musculares da face e associá-los a sentimentos de medo, angustia, felicidade, perda, entre outros.  Segundo seus estudos, o sujeito registra sentimentos via micro sinais musculares em sua face, mesmo quando deseja aparentar algo diferente. Sentimentos disfarçados por palavras em fala ou discurso, se revelam  imediatamente fantasiosos por seu rosto, que de alguma forma revela algo diferente.

O que pode parecer algo restrito aos apaixonados, mentirosos ou às necessárias adaptações à vida cerimoniosa em sociedade, requer uma análise mais atenta. Mesmo em tempos de liberação sexual, é comum ouvirmos relatos de casais que se relacionam sexualmente às escuras. Parece que para eles, mesmo no momento dito mais íntimo, é necessário proteger seus olhos de ver ou de ser visto, que mistérios além do corpo nu poderiam ser revelados pelo entre olhar?

O olhar em sua potência é companheiro do sujeito há longa data, posterior à audição que está presente ainda no pre-nascimento mas, diferentemente desta, é capaz também de ser ativo e se fazer comunicar. O olhar deste cedo está a decifrar e ser decifrado.

Entretanto, esse decifrar imagético segue caminhos próprios. Pesquisas neurológicas recentes, indicam que a imagem e a linguagem transitam por áreas diferentes do cérebro humano e que quando uma imagem é decifrada pela linguagem, algo se perde.

A fim de tentar se verificar esta hipótese, foi realizado um teste [3] onde era apresentada uma imagem ao sujeito testado, que uma vez memorizada, deveria ser reconhecida e selecionada em um outro grupo. Verificou-se que quando era solicitado que a pessoa, antes de buscar a réplica da imagem original, descrevesse em palavras a imagem memorizada, ela tinha reduzida sua taxa de acerto se comparada ao cenário onde o sujeito testado, não traduzia a imagem em palavras antes da busca. Algo se perdia pelo processo de decodificação entre imagem e palavra e depois no caminho inverso, palavra e imagem.

O dito popular, anteriormente aos cientistas, já nos dava pistas desse caminho. É comum ouvirmos em momentos especialmente tocantes alguém dizer “não tenho palavras para expressar”, onde o sujeito falante reconhece que qualquer tentativa de verbalização seria redutora. Ou ainda na cena final do filme “O Poderoso Chefão III” quando o personagem vivido pelo ator Al Pacino nos oferece alguns segundos de um silêncio desesperado ao constatar a morte de sua filha, não há palavra que seja suficiente.

A linguagem tão importante na constituição do sujeito, de alguma forma castra a experiência em sua tradução. A imagem traduzida toma outro lugar, nem sempre tão próximo a experiência original.

A castração da experiência pela palavra em alguns casos pode ser limitante e redutora, mas de outra forma também protege quem vê e a vive. Uma experiência comunicada em palavras pode ressignificar a sua história original e também proteger contra algo da má experiência. Exemplo disso, é o recurso terapêutico de vivências e relatos de pessoas vítimas de um estresse pós traumático. A expressão do mesmo em palavras escritas ou faladas é vivida como algo redutor e ressignificador do trauma original. Na vida cotidiana é comum nos depararmos com o caso clássico do sujeito abandonado em uma relação amorosa, capaz de ocupar os ouvidos dos amigos mais próximos com infinitas repetições da sua mesma história de desilusão. De alguma forma, o repetir em palavras torna a experiência, pouco a pouco tolerável e, em algum tempo depois, diferente e até assimilável.

Se como pessoa adulta ainda nos surpreendemos com o poder das relações com outros e suas consequências quando ausentes do códigos e defesas da fala, o que dizer então da criança ainda pequena, carente desta alternativa, que vive suas experiências em carne viva?

Na ausência da palavra, a criança no seu primeiro ano de vida, sobrevive às custas de seus recursos anteriores à linguagem. O olhar, tato, sensações, sons e vozes, naquele momento são seus instrumentos de interação com o mundo interior e exterior, que no início ainda parecem confundidos.

Absolutamente depende de outros, a criança pouco a pouco aprende a decodificar, ainda sem o atalho da palavra, necessidades, desejos e sentimentos próprios e posteriormente dos outros que a cercam.

Cenas de crianças em interação com seus cuidadores, mãe ou quem venha exercer este papel, nos faz perceber que há algo mais no sorriso ou olhar da criança com seu par. Ainda não distraída pela linguagem a criança se abastece do que consegue capturar pelos seus meios e assim interage. Cuidador e criança, quando em sintonia, são capazes de longas conversas sem nenhuma troca de palavras.

O psicanalista René Spitz em seus estudos [4] com crianças órfãs, num cenário de abundância de demandantes e severas limitações de recursos humanos, pôde verificar que mesmo as cuidadas tecnicamente com recursos hospitalares, muitas vezes não eram capazes de sobreviver. As necessidades de subsistência atendidas com alimentação, limpeza e acompanhamento médico, não eram suficientes.  Na ausência de recursos e na consequente falta do afeto amoroso do cuidador como um chamado à vida, a criança pouco a pouco se fechava em si própria e por fim morria.

O afeto amoroso pelo olhar, tato, cheiro, voz do cuidador de alguma forma seduz o bebê à vida, oferecendo um caminho sustentado e decodificado a quem está ameaçado e dependente num lugar estranho a si.

O bebê abastece-se do que captura por seu olhar ainda primitivo e não educado pela palavra. Neste lugar, sem as distrações e conforto da linguagem, está exposto à experiência bruta, que se por um lado é genuína, por outro, ainda não é passível dos recursos atenuantes da simbolização. Percebemos as pistas desta experiência quando o bebê em um colo é capaz de dormir tranqüilamente, enquanto que em outros, agita-se e chora incomodado por algo que não sabemos como nomear. A seu modo, ele é capaz de perceber o que recebe e com seus parcos recursos rejeitar ou não o que lhe é oferecido.

Entretanto, como absolutamente dependente, o bebê quando exposto à experiência bruta e dolorosa tem poucas alternativas de saída. Muitas vezes seu algoz é também sua única possibilidade ou mesmo esperança de socorro, mas e que dizer quando ele não está disponível para salvá-lo?

O cuidador da criança abatido por algo que o debilita, uma doença grave, um luto severo ou qualquer outro impedimento que o impossibilite de exercer sua função amorosa junto ao bebê, pode expô-lo à situação do intolerável. Aquele pequeno ser, ainda com poucos meios, quando apresentado ao sentimento bruto e sem cortes do sofrimento do seu cuidador, experimenta algo do vazio.

Não há disfarce, os recursos da vida em sociedade largamente utilizados para uma interação equilibrada e aparentemente saudável na relação entre adultos, não se prestam ao bebê. Camuflagens da linguagem ou do trato social não são acessíveis a ele, que se limita a experiência bruta da relação com a mãe ou seu cuidador.

A mãe precária pelo seu sofrimento intenso é percebida pelo bebê sem atenuantes. A expressão da face, a frieza do toque ou o seu olhar sem brilho, escuro, apresentam a experiência da quase morte ao bebê. Tragado por esta, tentará ainda reclamar por uma mudança a quem o embala, mas muitas vezes essa alternativa não está disponível ao sujeito abatido pela dor extrema. Nesse caso, não há rota de fuga, todos caminhos levam àquela mãe aparentemente funcional e viva aos olhos dos que a cercam, mas que ao seu filho se mostra em sua essência pura, morta [5]. Ao bebê, ainda monocórdio em suas possibilidades de interação, cabe somente a experiência bruta, por pior que ela possa se apresentar.

A vítima busca em seu agressor a saída, mas do outro lado não há resposta possível. O sujeito enlutado vive a morte de algo em si e é somente isso que ele pode responder, independentemente do chamado e de quem o chama.

O pedido de escape repetidamente feito e não atendido a alguém incapaz de fazê-lo, direciona o solicitante à única alternativa que se apresenta: repetir mesma nota que escuta. Tal qual metrônomos em ritmos diferentes, que quando distribuídos por um plano com movimento livre, acabam por se alinhar magicamente em um mesmo ritmo temporal, o bebê responde com mortificação ao seu cuidador mortificado.

Esta posição de alguma forma gera pertencimento e lugar a alguém que como absolutamente vulnerável não tem opção de escolha. A quase morte ainda é uma alternativa à morte efetiva, no entanto a experiência agônica é por demais dolorosa e cobra seu preço.

O tempo passa e o bebê, amadurecendo, é apresentado a outras  alternativas, interações e caminhos que por fim abrem possibilidades de escape da posição inicial, mas o sofrimento anterior deixa suas marcas. É preciso se livrar daquela parte sem vida, proprietária e causadora de tanta dor e seguir em frente. Como um soldado que na esperança de sobreviver abdica de um membro necrosado, a criança cinde algo de si e investe no que lhe sobra.

É comum conhecer pessoas, que passaram por este tipo de experiência, operativas quando adultos. Muitos inclusive com destaque e uma certa super adaptação à sociedade, apresentando habilidades ditas especiais nos seus principais talentos. Agem como alguém que, tendo dificuldades na visão, acaba por hiper sensibilizar sua audição como recurso compensatório à limitação original.

O melhor desenvolvimento de recursos funcionais, mascaram um sujeito marcado por um severo sofrimento anterior. A alternativa de sobrevivência viabilizou sua sobrevida, no entanto, a capa funcional desenvolvida, apesar de sua aparente eficiência, serve principalmente como camuflagem protetora de um mundo interno absolutamente arcaico e vulnerável.[6]

A super adaptação funcional monopoliza e consome a vida do sujeito, já que fora desta  arena ele estaria novamente exposto ao terror agônico, seu companheiro de toda vida. Viver às custas de engenhosas limitações também causa esforço e sofrimento em uma existência cada vez mais restrita.[7] De qualquer forma, parece melhor ficar aprisionado às claras, do que a ameaça de se perder às escuras dos primeiros tempos.

Entretanto, não há defesa intransponível. O curso da vida reserva eventos inesperados ou de complexidade superior, que pressionam e expõem limites e fragilidades. Neste momento, aquele sujeito sobrevivente e aparentemente adaptado, como parede oca, se desmorona ao primeiro sopro de um vento um pouco mais forte, revelando novamente a criança desprotegida, vulnerável e quase morta.


Marcos Paim C. Fonteles, psicanalista
marcospaimcfonteles@gmail.com






[1]  Trecho de “Pela Luz dos Olhos Teus”, T. Jobim.

[2]  “Facial Action Coding System”, P. Ekman e W. V. Friesen.

[3]  “Thoughts beyond Words: When Language Overshadows Insight” J. W. Schooler, S. Ohlsson e K. Brooks.

[4]  “O Primeiro Ano de Vida”, R. A. Spitz.

[5]  O psicanalista A. Green explora especialmente esse tema no seu texto “A Mãe Morta” de 1980.

[6]  “Só na presença dessa mãe suficientemente boa, pode a criança iniciar um processo de desenvolvimento pessoal e real. Se a maternagem não for boa o suficiente, a criança torna-se um acumulado de reações à violação; o self verdadeiro da criança não consegue formar-se, ou permanece oculto por trás de um falso self que a um só tempo quer evitar e compactuar com as bofetadas do mundo.” (Extraído do texto “O relacionamento inicial entre uma mãe e seu bebê”, de D. W. Winnicott de 1960)

[7] “toda forma de psicopatologia, seja extrema ou sutil (e universal), pode ser pensada como representação de uma forma de autolimitação inconsciente da capacidade de vivenciar estar vivo enquanto ser humano. A limitação da capacidade de esta vivo pode se manifestar de inúmeras formas, até mesmo com a constrição da amplitude e da profundidade de sentimentos, pensamentos e sensações corporais, restrição da vida onírica e de reverie, um senso de irrealidade nas relações consigo próprio e com outras pessoas, ou com o comprometimento da capacidade de brincar, de imaginar, de usar símbolos verbais e não verbais para criar e ou representar a própria experiência. Não só aceitamos. mas adotamos essas e outras limitações da nossa capacidade de estar vivo, quando a possibilidade de estar plenamente vivo como ser humano implica uma forma de dor psíquica que tememos não suportar. Ao adotarmos essas formas de desvitalização psíquica, sacrificamos parte de nós mesmos em troca da sobrevivência do todo, mas que o ‘todo' consumiu grande dose de vitalidade no processo.” (Extraído do texto “Sobre a arte da psicanálise” de T. H. Ogden)

sábado, 23 de abril de 2016

INÚTIL NECESSÁRIO


Quando a razão moderna libertou o homem do divino e aterrou as questões de Deus, o mundo pareceu finalmente explicado, as lacunas ainda existentes, aos poucos seriam esclarecidas pela ciência. Tudo era somente uma questão de tempo, investimento e paciência. Estava próximo o mundo inteiramente domesticado, onde a ciência o explica e o dinheiro tudo viabiliza.

Neste cenário de aparente completude, em caminho oposto às chamadas ciências duras, a filosofia, as artes e a nascente psicanálise deram um passo adiante e adicionaram complexidade e graus de liberdade à equação aparentemente resolvida.

Neste contexto, questionando e desconstruindo o aparentemente pronto, o movimento pós-moderno buscou o outro lado de dogmas e modelos pré-formatados. A arte simplesmente seguiu sua vocação de ir além, tal como criança que se diverte ao desmontar seus brinquedos curiosa em conhecer os mistérios escondidos no avesso, o artista nos expõe a algo mais.

Os exemplos foram variados: a pintura abstrata; o free jazz; as performances artísticas; o cinema nouvelle vague e outras diversas formas de expressão deram um passo adiante. Parecia que a fronteira havia avançado um pouco mais longe e o controle mostrava-se novamente limitado.

A busca ao pós-moderno é cara e laboriosa. O trabalho de desconstruir exige um cuidadoso esforço de construção prévia, que na maioria das vezes não permite atalhos. Parece estranho o músico que emite sons dissonantes ou estridentes no free jazz, ao mesmo tempo ser capaz de tocar peças de difícil execução da música convencional, ou um pintor capaz de produzir quadros tecnicamente impecáveis preferir produzir manchas ou borrões aparentemente sem sentido.

A guitarra em chamas, antes tocada à exaustão pelo virtuoso, em muito pouco se parece ao objeto destruído pela criança raivosa. A obra que se apresenta essência e minimalista, apesar de semelhante, em nada se compara ao primitivo ou infantil. O trabalho do artista de vanguarda definitivamente não é obra de criança ou preguiçosos.

A obra finalizada posiciona-se como algo sem função ou aplicação definida, é o inútil que abre espaço ao desconhecido, inesperado e instiga o expectador. Cabe a ele deixar-se seduzir e também se expor. Longe de um caminho simples ou definido, apresenta-se sem contorno, um percurso por trilhas sempre desconhecidas.

É necessário ao expectador também trabalhar, não se trata somente de receber ou contemplar de forma passiva, é preciso esforço e sustento ao sujeito que a obra instiga e desequilibra.

Perceber o estranho e expor-se ao vazio que destrói conceitos e sentidos preconcebidos, nos reapresenta à ignorância e enfraquece redes de segurança cuidadosamente elaboradas ao longo de nossa própria história. A vertigem do vazio força o movimento e a expansão, mas o combustível da angústia por vezes é intolerável e defesas dificultam ou mesmo paralisam o movimento.

Defesas enfraquecidas abrem flancos por onde antes o crescimento era bloqueado, mesmo a que se faz vitoriosa no embate com o que a questiona, é impactada. Quando instigada, ela se faz necessariamente mais forte e custosa, causando sofrimento, algumas vezes, bem superior ao que quer proteger. No limite, a dor leva o sujeito a buscar ajuda, também aí a arte cumpre sua missão.

No entanto, nem sempre é assim. Artista, obra e expectadores estão inseridos em uma sociedade, que deseja ser explicada pela razão e realizável pelo dinheiro, sem falhas ou ineficiências. Não sem motivo, agentes estão sempre atentos às necessidades que possam gerar oportunidades e ganhos.

A arte pós-moderna em suas digressões, por vezes parece hermética, abrindo espaço à sua digestão por especialistas que decodificam seus mistérios e preenchem vazios. O incompreensível e sem sentido incomoda e requer esforço do expectador, mais fácil se defender e creditá-la a algo restrito a alguns iniciados.

O capital vende o conforto e pertencimento aos que podem pagar pela digestão terceirizada e o visto de sujeito, se apresenta como atalho desviante de angústias e continente de escapamentos. Se posso pagar, por que não usar as facilidades disponíveis?

A produção artística também pode ser otimizada: parece não haver sentido em investir esforço na construção de algo singular a ser seguidamente desconstruído. A eficiência industrial permite ganhos que podem e devem ser capturados. O trabalho oportunista, mascarado pela liberdade criativa e referendado por decodificadores habilitados e diretamente interessados, cortam esforço e geram eficiência e produzem arte consumível. 

A desconstrução também interessa à lógica mercantilista, remunerar e reforçar a substituição sem limites, soa como música aos ideais de um mercado em eterna expansão. A forma mais eficaz de crescer é simplesmente descartar o obsoleto e abrir espaço à troca pelo novo.

Oferta de conforto e pertencimento, mercado em expansão permanente e geração de lucro a agentes e produtores, satisfazem com folga as leis de oferta e demanda do mercado. Gentilmente a produção artística pós-moderna é adotada por agentes econômicos, escapa de si e transfigura-se, transformando obra em produto, experiência em entretenimento.

O expectador, anestesiado, agradece e como sujeito movido pelo desejo, confunde o ideal, que preencheria seu vazio, com o produto de consumo, adiando angústias, mas o aparente conforto não se sustenta e demanda cada vez mais analgésicos. O inútil necessário cobra sua ausência.

(Marcos Paim C. Fonteles, psicanalista)
marcospaimcfonteles@gmail.com

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

SUJEITO GENÉRICO


Parece fácil definir o modelo de sucesso para uma carreira no mundo corporativo, são infinitos livros de autoajuda e revistas de negócios indicando o caminho. Basta seguir o padrão: inovador, ágil, flexível, com facilidade para o trabalho em equipe, dedicado e com o único defeito de ser um pouco perfeccionista. Programas de recrutamento e entrevistas parecem um desfile de iguais, mesmas respostas, mesmo discurso, exaustivamente treinado e ensaiado.

Como poderia ser diferente? O ser humano tem a habilidade única de se adaptar a diferentes tipos de comportamento e ambiente, nada mais natural em um cenário competitivo seguir o modelo dito vencedor. Para que buscar ou arriscar alternativas quando o padrão já está ali definido e com instruções passo-a-passo? Os mais talentosos conseguem inclusive incorporar essas características como naturais, mesmo que às vezes estejam bem distantes de suas originais, assumindo um novo personagem - "mas só para o trabalho e carreira" - imaginam eles.

O aprendizado abre oportunidades e viabiliza o desenvolvimento de novas habilidades, portanto vale investir e buscar o modelo campeão. O mercado também está aí para ajudar e transforma-se em uma máquina capaz de produzir profissionais cada vez mais eficientes, produtivos e parecidos. Eles são mais fáceis e econômicos para administrar, especificidades ou características individuais consomem energia, investimentos à singularidade e não viabilizam os tão necessários benefícios da economia de escala.

Homens ou mulheres, não faz diferença, brilho no olho, cabelo alinhado, inglês fluente, MBA, calça caqui ou azul marinho, camisa social esporte, cinto e está completo o padrão andrógino do casual corporativo. Um caminhar atento no horário de almoço pelas principais avenidas empresariais da cidade e estarão todos lá, variações sobre um mesmo tema.

Ótimo então, todos ganham. As pessoas tornam-se mais preparadas, desenvolvem novas habilidades e comportamentos, e as empresas ganham produtividade e eficiência. Segue o ciclo e o processo praticamente se industrializa, atingindo o melhor grau de eficácia na curva de tempo, esforço e resultado.

No entanto, a adaptação gentilmente forçada a um modelo externo e definido por terceiros, ocasionalmente expõe sinais de desgate e desconforto ao ator convidado. Mesmo bonito e elegante, o salto alto também cobra seu preço após algumas horas de festa. O que dizer de um processo que pode consumir anos?

Depois de tanto investimento o esforço não pode ser perdido. "Qualidade de vida!" proclamam os clássicos programas motivacionais. Eles chegam com estímulos diversos: treinamentos, viagens, esportes, voluntariado, arte. Aos protagonistas ainda cabe um investimento a mais via carreira, promoções, bônus, remuneração variável e stock options, que com certeza encerrarão a questão. O espetáculo não pode parar!

Amansado por analgésicos, reconhecimento e premiação, não há problema em continuar. Haverão sempre férias, momentos em casa, cada vez maior e mais elegante, e todo conforto que o último bônus permitiu comprar. Não há problema, afinal o herói corporativo, aquele lá do início: inovador, ágil, flexível, e com o pequeno defeito de ser um pouco perfeccionista; é só instrumento de carreira, usado sabiamente a fim de agilizar o caminho ao sucesso. Passado o crachá pela roleta de saída tudo volta ao original, sem problemas.

Estudo recentes indicam que não é bem assim. A chamada psicologia positiva americana, tem pesquisado, entre outros, o impacto de posturas corporais e atitudes ensaiadas na bioquímica cerebral e seus efeitos na alteração de estados de humor ou sensações. Em artigo(*) recente, os pesquisadores de psicologia social das universidades Columbia e Harvard nos EUA indicam, por exemplo, que uma postura corporal, de braços erguidos em sinal de vitória, é capaz de desencadear processos internos, que no fim geram um sentimento genuíno de autoconfiança. Independente de ser somente uma simulação, os estímulos cerebrais reagem de forma semelhante a um fato realmente ocorrido.

O que então dizer de estar pelo menos oito horas por dia assumindo um personagem, com postura, pensamento e atitude ensaiados segundo um modelo predefinido. Ainda mais sendo prestigiado e premiado conforme sua maior aderência a este. Após algum tempo, parece pouco provável que esse personagem realmente fique restrito à sua aplicação profissional.

O personagem pré fabricado pouco a pouco assume a preponderância e o controle, de coadjuvante passa a protagonista e como tal assume seu papel dominante. Ator e personagem tornam-se um e o que em um primeiro momento era restrito ao ambiente profissional, ultrapassa fronteiras e ocupa novos terrenos.

O inverso também ocorre, buscando proteção contra o risco de invasão da persona corporativa à vida pessoal ou simplesmente cansado de suportar uma fantasia que não lhe cabe, o sujeito assume uma cópia às avessas, não fiel à si mesmo, mas simplesmente um negativo do modelo imposto, quase uma antítese ao vencedor adotado na vida profissional.

Positivo ou negativo, não há diferença, estão repetindo um modelo externo e padronizado conflitante à singularidade humana, onde o sujeito deixa de ser protagonista de sua própria história e é submetido, sem alternativa de escape, a um modelo ideal definido conforme o interesse de terceiros.

Em qualquer situação, com o tempo a estrutura não se sustenta, cedo ou tarde a pessoa esquecida por baixo das várias camadas sobrepostas manifesta-se pelo sofrimento psíquico ou físico, tanto faz.

(Marcos Paim C. Fonteles, psicanalista)
marcospaimcfonteles@gmail.com



(*) Power Posing: Brief Nonverbal Displays Affect Neuroendocrine Levels and Risk Tolerance
Dana R. Carney*, Amy J.C. Cuddy**, and Andy J. Yap*
*Columbia University and **Harvard University
http://www.people.hbs.edu/acuddy/in%20press,%20carney,%20cuddy,%20&%20yap,%20psych%20science.pdf