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"Vida longa aos dias de sol!"

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

PESTES SUBVERSIVAS


Médicos da peste: a sombria aparência de quem tratava de doenças contagiosas
e epidêmicas na Idade Média.


peste1:
1 doença infectocontagiosa que se manifesta sob a forma bubônica, pulmonar ou septicêmica, provocada por
Bacillus pestis, que é transmitido ao homem pela pulga do rato
2 mal contagioso; pestilência
3 epidemia que acarreta grande mortandade
4 tudo que corrompe física e moralmente
5 coisa funesta
6 excesso de qualquer coisa prejudicial ou danosa
7 mau cheiro, fedor
8 coisa malfeita, ordinária

subversivo2:
1 que subverte; que causa subversão
2 que ou aquele que prega ou executa atos visando à transformação ou derrubada da ordem estabelecida; revolucionário
3 que ou aquele que expressa ideias, pensamentos, opiniões opostos ou profundamente diferentes dos da maioria
4 que ou aquele que age de maneira a perturbar, tumultuar as instituições, que é contra a ordem e deseja o caos e a anarquia; perturbador, agitador 






Será possível comparar a experiência da arte à psicanálise? Áreas aparentemente tão distantes poderiam estar ligadas? Talvez possamos falar sobre o estranhamento, ou o eterno questionamento sobre suas qualidades. Afinal, ambas são severa e repetitivamente questionadas à respeito de sua utilidade, já que em um cenário de eterna busca da eficiência, parece sem sentido investir-se em algo que não traga benefícios claros e tecnicamente comprováveis.

Talvez este parentesco, via crítica, nos revele algo de comum entre ambas. A psicanálise segue sempre comparada ao sua parente dita mais próxima, a psiquiatria, sendo desqualificada quanto aos seus resultados e cientificidade dos seus conceitos, pois entre tantos testes e regulações, a psicanálise parece incapaz de satisfazer aos critérios de avaliação normalmente aceitos. A ciência médica por outro lado, rigidamente regulada e corporativa em seus interesses, informa claramente seus avanços e resultados técnicos. Qual o sentido em uma sociedade rica em alternativas tecnológicas, perder-se tempo em algo estranho que afirma, sem comprovar, que ocupa-se da “cura pela palavra”3?

Sua colega e também subversiva4, a arte, do mesmo modo padece na comparação com seus primos mais próximos: o design e a indústria do entretenimento. Os dois sendo claramente os campeões da sociedade corrente, onde não por coincidência, a empresa mais valiosa do mundo5, Apple, se diferencia perante seus concorrentes pela opção do belo, valorizando-se e diferenciando-se pelo design de seus produtos6; e sua prima, a industria do entretenimento, que é uma das que mais cresce no mundo7, responsável por um mercado anual de quase US$2 trilhões8. Parece que estes dois campeões, dizem ao que vem e trazem resultados claros e objetivamente mensuráveis. O que dizer da arte, muitas vezes hermética, pouco decifrável e aparentemente sem sentido?

Tudo indica que os primos pobres tem suas mazelas comuns à sobrevivência em um mercado aparentemente focado em soluções, mas além dos seus desafios competitivos o que mais estes teriam em comum? Onde se tocam? Talvez na experiência do estranho, aquele que nos desequilibra e questiona o lugar comum. Por aí, psicanálise e arte aproximam-se por suas consequências e efeitos aos sujeitos que de alguma forma, são contaminados pela exposição às suas pestes9.

À infecção exige estar exposto à sua influência, vivida quase sempre em um ambiente especial e concentrado, necessário à contaminação. Não por coincidência, psicanálise e arte são exercidas em lugares que guardam uma especificidade em relação às partes comuns da sociedade. Mesmo considerando exceções como os movimentos de arte urbana10 e de experiências recentes de atendimento psicanalítico em espaços públicos11, vale nos determos um pouco mais na comparação do setting analítico com a galeria de arte, ambos necessários à experiência infecciosa. Cada um segue ao seu modo, mas de alguma forma estão ligados em mítica.

O setting analítico, descoberto por Freud12 nos primórdios da nascente psicanálise é herdeiro do consultório médico, mas logo cedo seguiu por caminhos singulares, como um espaço onde analista e analisando trabalham, não como numa conversa informal ou uma anamnese médica, mas em um encontro especial de suas palavras, viabilizado pela associação livre do analisando, a escuta flutuante do analista e suas intervenções. O divã está presente, mas o elemento mais importante e viabilizador da experiência é a transferência estabelecida entre o analista e o analisando. Elemento necessário a existência do trabalho, quando o analista assume como disse Lacan o “lugar de sujeito do suposto saber”13, algo que de alguma forma oferece espaço às questões do sujeito analisado14.

A galeria de alguma forma fala com o setting, um outro lugar também separado, destacado, especialista no que se propõe: expor obras de arte à contemplação. Ali, de alguma forma o expectador também se coloca de forma diferente, normalmente em silêncio, poucas palavras, com seu olhar assumindo a posição de sentido soberano sobre os demais. Um caráter às vezes ascético, tal como um “cubo branco”, que se posiciona neutro, a fim de que a obra de arte se coloque como o elemento maior. Também não seria demasiado supor uma “transferência” entre o expectador e a obra, que lhe apresenta algo que parece um estranho familiar, um algo a ser descoberto. Um suposto saber?15 Talvez sim, um suposto saber do artista realizador da obra, mas não somente isso. A obra livre de seu autor, segue por seus próprios caminhos, mais além do que muitas vezes o originalmente planejado. Em um documentário16 sobre o espetáculo “Beatles” do Cirque du Soleil, Paul McCartney ao assistir sua canção representada em um dos quadros da peça, se surpreende o quanto teria ido longe sua própria criação, comparada às pretensões presentes no momento singelo de sua composição: uma simples canção composta com seu colega da época, John Lennon, “era um processo tão simples e veja o que aconteceu”, diz ele no filme. A obra assume sua própria vida, independente dos desejos do seu criador.

E o que dizer do ato analítico? Aquele ato herético, que como tal expõe o sujeito às escolhas, o desloca dos seus trilhos seguros cuidadosamente elaborados ao longo de sua vida, quebra verdades, implica ações e consequências, desperta quem parece adormecido. Na experiência da arte, talvez também não seja diferente, aquele quadro obscuro, estranho, muitas vezes nos revela algo familiar, um avesso às vezes ignorando ou esquecido, mas que apresentado indiretamente nos faz pensar, nos reapresenta à vertigem de um furo próximo, ameaçador mas ao mesmo tempo, também um pouco nosso. Se não comparável em potência e continuidade à experiência psicanalítica, a exposição à obra de arte se apresenta disponível e sempre à mão. Como disse o curador da Bienal de Coimbra de 2017, “Curar e Reparar”, Delfim Sardo17: “Em si, a arte não cura nada. Também não revoluciona, nem rompe, nem corta, mesmo que finja fazê-lo: encena, por muitas formas, esses processos e, no melhor dos casos, propõe-nos que reparemos.”, talvez ela vá menos longe do que a palavra que cura da psicanálise, mas ao mesmo tempo, como ele também nos diz “há qualquer coisa que pode ainda ser arranjada, mesmo que pela exposição de uma ferida”. Sim, uma ferida, talvez somente um pequeno furo, mas absolutamente necessário ao sujeito refém de um mundo cada vez mais hermético e equilibrado. Assim, arte e psicanálise, cada uma a seu modo, são capazes de cumprir talvez sua missão comum e de algum modo nos infectar, estimulando-nos a irmos além, sem mapas ou guias. Um viajante singular, que como tal, caminha sempre por terras estrangeiras. 



Marcos Paim C. Fonteles, psicanalista
marcospaimcfonteles@gmail.com



Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2009, p.1483.

Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2009, p.1784.

“Compreende-se agora por que tem efeito curativo o método de psicoterapia que foi aqui exposto. Ele anula a efetividade que originalmente não foi ab-reagida, ao permitir a seu afeto estrangulado o escoamento pela fala, e a leva à correção associativa, impelindo-a para a consciência normal (em hipnose mais leve) ou removendo-a por sugestão médica, como ocorre no sonambulismo com amnésia.” (“Estudos Sobre a Histeria”, Obras Completas Volume 2, Josef Breuer e Sigmund Freud, 1892, p.37)

“A poesia
quando chega
não respeita nada.
Nem pai nem mãe.
Quando ela chega
de qualquer de seus abismos desconhece o Estado e a Sociedade Civil infringe o Código de Águas
relincha
como puta
nova
em frente ao Palácio da Alvorada.


E só depois
reconsidera: beija
nos olhos os que ganham mal embala no colo
os que têm sede de felicidade e de justiça.


E promete incendiar o país.”
(“Subversiva”, Ferreira Gullar, do livro “Na Vertigem do Dia”, p.33)


“Apple recuperou o primeiro lugar como a marca mais valiosa do mundo após o Google ter interrompido sua supremacia no ano passado, de acordo com o ranking anual BrandZ, compilado pela empresa de pesquisa de marketing Millward Brown.” (site “O Globo”, 27/05/2015, https:// oglobo.globo.com/economia/apple-ultrapassa-google-como-marca-mais-valiosa-do-mundo-afirma- empresa-de-pesquisas-16272469)

“(...) a Apple integrou arte, tecnologia e inovação, mesmo tendo mantido ao menos um vínculo com a economia mais tradicional, sua capacidade de fazer dinheiro e de impor, de maneira muitas vezes sub-reptícia, inúmeros limites.” (“A Economia Artisticamente Criativa”, Xavier Greffe, p.15)

7“Trata-se essencialmente de indústrias culturais que souberam, na maior parte dos casos, progredir qualquer que fosse a conjuntura e às quais se acrescentam as indústrias quase culturais, isto é, indústrias nas quais os ativos culturais são mobilizados não para produzir bens culturais em si, mas produtos cuja dimensão cultural conta ao lado de sua tradicional dimensão funcional ou utilitária, tal como a moda, a arquitetura, os brinquedos, a publicidade etc.” (“A Economia Artisticamente Criativa”, Xavier Greffe, p.17)

8“18a Pesquisa Global de Entretenimento e Mídia 2017-2021”, PricewaterhouseCoopers.

9Famosa e provavelmente fictícia frase atribuída a Freud por Lacan, quando na ocasião de sua primeira visita aos EUA em 1909 para conferências na Universidade de Clark, “eles não sabem que lhe estamos trazendo a peste” (“A Coisa Freudiana”, Escritos, Jacques Lacan, p.404), conforme afirmado por Roudinesco, “Consegui estabelecer que Freud jamais pronunciara essa frase e que Jung jamais tocara nessa história de peste com ninguém. Quando chegou aos Estados Unidos, em 1909, escoltado por Jung e Ferenczi, ele simplesmente afirmou: ‘Eles ficarão admirados quando souberem o que temos a dizer.’ (“Lacan, a despeito de tudo e de todos”, Elisabeth Roudinesco, p. 102)

10“Em meados dos anos 1970 crescia uma cultura eminente dos guetos de Nova York, algo que não podia ser controlado: vinha de imigrantes hispânicos e negros excluídos e discriminados, em meio a muita violência, muitas drogas e diversos problemas de uma grande cidade, cenário ideal para o despertar de algo novo, capaz de mudar as coisas. Surge a arte do graffiti que, somada à popularização da cultura hip-hop, se espalhou pelo mundo e tem seu reconhecimento entre milhares de artistas jovens, às vezes anônimos, assim como artistas maduros e renomados.” (“Graffiti Fine Art”, Binho Ribeiro, p.6)

11“Aos sábados, na hora do almoço, é possível ver várias duplas perto do jardim, sentados em cadeiras de praia, sob a sombra de árvores, conversando. Não parece, mas é uma sessão de terapia.” (“Grupo Oferece Sessões Gratuitas de Psicanálise na Praça Roosevelt”, site A Vida no Centro, 13/09/2017, http://avidanocentro.com.br/cidades/grupo-de-psicanalistas-oferece-sessoes- gratuitas-na-praca-roosevelt/)

12“Então me tornava ainda mais insistente, ordenava aos doentes que se deitassem e fechassem deliberadamente os olhos para se ‘concentrar’, o que ao menos resultava em certa semelhança com a hipnose. Tive assim a experiência de que sem qualquer hipnose emergiam novas e mais recuadas lembranças, que provavelmente diziam respeito a nosso tema. Tais experiências deram-me a impressão de seria de fato possível trazer à luz, por mera insistência, as séries de ideias patogênicas que sem dúvida havia. E como essa insistência custava-me esforço e sugeria-me a interpretação de que eu tinha uma resistência a vencer, esse estado de coisas prontamente converteu-me para mim na teoria de que através do meu trabalho psíquico tinha de vencer uma força psíquica que se opunha, no paciente, a que as ideias patogênicas se tornassem conscientes (fossem lembradas). Uma nova compreensão pareceu então abrir-se para mim, quando me ocorreu que esta devia ser a mesma força psíquica que havia concorrido para a formação do sintoma histérico e impedido então que a ideia patogênica se tornasse consciente.” (“Estudos Sobre a Histeria”, Obras Completas Volume 2, Josef Breuer e Sigmund Freud, 1893, p.377)

13“Desde que exista em algum lugar o sujeito suposto saber há transferência.” (“Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise”, Seminário 11, Jacques Lacan, p.226)

14“Outra vantagem ainda da transferência é que, nela, o paciente produz perante nós, com clareza plástica, uma parte importante da história de sua vida, da qual, de outra maneira, ter-nos-ia provavelmente fornecido apenas um relato insuficiente. Ele a representa diante de nós, por assim dizer, em vez de apenas nos contar.” (“Esboço de Psicanálise”, Obras Completas Volume 23, Sigmund Freud, 1938, p.190)

15“Quem, desse sujeito suposto saber, pode sentir-se plenamente investido? Não é aí que está a questão. A questão é, primeiro, para cada sujeito, de onde ele se baliza para dirigir-se ao sujeito suposto saber. De cada vez que essa função pode ser, para o sujeito, encarnada em quem quer que seja, analista ou não, resulta da definição que venho lhes dar que a transferência já está então fundada” (“Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise”, Seminário 11, Jacques Lacan, p.226)

16“É estranho né? Mas, para mim, o que é realmente estranho é, eu me lembro de compor essas coisas, que era tão pouco, pouco guitarra, pouco piano, um pedaço de papel e lápis, um envelope. ‘Sargent Pepper’ ou alguma coisa. Era um processo tão simples, e veja o que aconteceu.” (“The Beatles Love - All Together Now - A Documentary Film - The Beatles - Cirque Du Soleil”, The Cirque Apple Partnership, 2008)

17Bienal Contemporânea de Coimbra, “Anozero, Curar e Reparar”, 2017, Delfim Sardo, Curador- geral, Luiza Teixeira de Freitas, Curadora-adjunta, http://anozero-bienaldecoimbra.pt/sobre/