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Neste espaço você poderá conhecer algumas das minhas reflexões, que espero, possam de alguma forma estimular seu pensamento e divertir.

"Vida longa aos dias de sol!"

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

SOBRAS QUE FALAM


Interessante notar o poder das palavras. Decodificação do pensamento, nomeia o que é abstrato, mas sendo apenas tradução, não consegue ser fiel ao objeto original, apenas semelhante. Como um escultor que retira os excessos da rocha e revela a forma submersa, as palavras não são diferentes, dão forma ao pensamento e o retiram do seu estado original. Resta saber o que fazer com as sobras.

O bebê ainda não aprisionado na linguagem, usa sua única ferramenta de tradução disponível, o sentir. Como um cego dependente da audição e do tato, ele usa o que tem disponível, falando e ouvindo sentimentos. Chora no colo de um e dorme tranquilamente no colo de outro, do seu modo, a conversa é estabelecida.

Aos poucos, instrumentalizado pela linguagem, esta habilidade adormece. Falar e ouvir é mais fácil, direto, objetivo, mas a ferramenta que livra do esforço é a mesma que aprisiona no conforto. Interessante observar astronautas recém chegados de longos períodos no espaço, incapazes de levantarem-se de suas próprias poltronas. Tornaram-se reféns da gravidade zero, outrora libertadora.

A linguagem então cumpre o seu papel. Ano após ano esculpindo pensamentos, sobra no inconsciente o resto que não foi trabalhado. Passado o tempo, o caminho já está obstruído e as palavras já não são capazes de alcançar o que foi deixado para trás.

Resta a alternativa do sentimento. Enfraquecido pela prepotência da palavra, ele ainda emite sinais do esquecido: angústia, ansiedade, vazio, megalomania, ódio, paixão, tristeza, euforia. Transitando pelos extremos, o sentimento deixa seus traços marcados pela característica comum, a intensidade. Positivo ou negativo, tanto faz, gargalhadas ou crises de choro são falas da mesma conversa.

O corpo também se oferece como alternativa. Ele tem sua própria linguagem, cansaço, hiperatividade, dores, insônia, doença. Os caminhos são quase infinitos e permitem a seu modo, escape ao reprimido, mas é difícil entender esta conversa. O recalcado mais profundo normalmente utiliza-se da conversa mais primitiva, não compreensível à maioria, placidamente acomodada ou imobilizada na comunicação monoteísta da palavra.

Passado o tempo, o recalcado que aflora deixa suas marcas, seus sintomas. Esquecidos na rotina, podem passar por uma vida inteira tolerados e convividos. Comum nos apresentarmos e nos conformarmos com nossas manias e repetições, traduzindo-os como nossa marca pessoal ou o nosso jeito. Oxalá permaneçam assim e não impeçam o trajeto de uma vida em paz, amando e trabalhando, como Freud nominou.

Em alguns momentos os sintomas parecem mais pesados. Uma decepção, luto ou perda deixam aflorar a fraqueza, e o que antes parecia um sinal inofensivo, começa a cobrar o seu esquecimento. O cardápio de antídotos são muitos. Uma boa companhia, atividade física ou simplesmente uma boa noite de sono, podem reequilibrar o sistema e permitir continuar.

Mas a vida não pára, os desafios são contínuos e a caminhada é longa. Nossos sintomas, companheiros de jornada, não nos abandonam posicionando-se lado a lado, exercendo sua principal característica, a repetição. Assim como o bebê que carente de alternativa, insiste no choro até que seja compreendido, o sintoma se repete infinitamente aguardando tradução. Os exemplos são muitos: o que não sabe perder, o que tem dores repetidas ou está sempre doente, o melhor amigo de todos que acaba sozinho, o que não consegue terminar o que inicia, o que não se livra do que lhe causa sofrimento, o que está sempre feliz ou triste, o que não se estabiliza em nenhum trabalho, o que não sustenta uma relação amorosa e muitos outros.

Você vai ficar bom. Os tradicionais médicos de família, desde os primeiros tempos já tranquilizavam seus pacientes, sugerindo sua cura. Casos clássicos de placebos, confirmam que o auto convencimento também cura. Neste caminho as alternativas são várias, livros de auto ajuda, programação neurolinguística, religiões ou ritos curandeiros. Por diversas vezes este mecanismo funciona, tem sua força e produz resultados.

Quando a melhora não vem, parece que o outro tem sempre a solução. Ouve-se de vários e a todo tempo: você deve fazer isso ou aquilo. A solução parece fácil. O problema que na pele do outro parece simples, nos próprios sapatos aprisiona em um ciclo fechado de repetição e sofrimento. A solução conhecida, parece impossível a quem a tem que executar, não fosse isso, o problema por si só já não existiria.

A palavra não age sozinha, as sobras não são deixadas de lado por acaso. Como no exemplo do escultor que separa minuciosamente o que fica e o que vai, a palavra também tem seus caminhos direcionados. O que foi deixado para trás, teve sua razão: dolorido demais para suportar ou proibido demais para aceitar. É preciso evitar o desprazer e por defesa, o dolorido ou reprimido, é esquecido e guardado. Pior, quanto mais sofrido mais bem guardado. A inflamação que dói ao menor toque precisa ser protegida, mas uma vez não tratada, cresce e fica mais sensível.

Por necessidade de uma proteção crescente, a defesa aumenta quase sem limites. No fim, o esforço para mantê-la de pé, consume tanto que sobra pouco para o resto. O peso é cada vez maior e o passo mais lento, cansado, sofrido. A barreira é crescente e deixa o recalcado mais distante, aparentemente perdido. A consciência não tem como perceber, ela está ocupada demais em gerir muros cada vez mais altos e dependentes de mais e mais esforço de vigilância.

Não há saída. Para buscar o que foi guardado por tanto tempo e que hoje causa sofrimento, é preciso superar nossas próprias resistências. Abrir espaço por entre as barreiras, para finalmente chegar até a ferida e trabalhar. O caminho é espinhoso, as resistências cumprem o seu papel e castigam cada avanço, tentando manter o protegido sem acesso, por isso é preciso persistência, esforço e tempo.

Ajuda é necessária, muito difícil percorrer um caminho desconhecido, cravado de obstáculos e sem saber onde se deve chegar. Ninguém imaginaria aventurar-se em uma caverna inexplorada sem o apoio de um guia habilitado, mesmo que ele como você, nada soubesse sobre o que viria descobrir. Este percurso é a experiência analítica, analista e analisando experimentando juntos um caminho esquecido.

Tal qual um arqueólogo que pacientemente separa cada um dos cacos encontrados, retirando a poeira, buscando a indicação do novo pedaço faltante, analista e analisando buscam suas redescobertas. Sabe-se que elas estão por ali, mas é preciso deixar fluir. As peças não se apresentam segundo as expectativas, seguir hipóteses preestabelecidas somente levam aos caminhos conhecidos e lá não estão as sobras.

É preciso deixar o pensamento livre e a palavra ao acaso. Por acidente, o esquecido finalmente dá seus sinais e escapa por entre as ranhuras dos muros da resistência. Uma palavra trocada, uma pausa, um esquecimento, uma associação. São pequenas pistas que levam aos caminhos abandonados e às sobras perdidas.

Uma vez reencontradas elas se apresentam como velhas amigas. Estranho como algo aparentemente esquecido, quando relembrado mostra-se tão presente e familiar. A sobra pede acolhimento e conforto. Renascida e livre do aprisionamento das resistências, traz consigo a breve sensação de ternura e completude infantil, originais da sua formação. Interessante notar que o antes proibido ou dolorido, causador de tanto esforço de proteção, trazido à vida, revela-se um fantasma inofensivo.

A satisfação da experiência anima a continuar e o percurso da análise apresenta novas velhas conhecidas. As sobras uma a uma vão se apresentando e retomando seu lugar. Em cada redescoberta uma breve satisfação.

O longo percurso da análise finalmente tem seu fim, quando cada pedaço retoma o seu lugar e finalmente é escutado e trabalhado. Ele pode abandonar seus sintomas, eles não são mais necessários. A criança que chorava no quarto escuro finalmente foi acolhida, pode então dormir em paz.

(Marcos Paim C. Fonteles, psicanalista)

sexta-feira, 20 de maio de 2011

PENA QUE TUDO DEU CERTO



Nascemos em uma caixa definida pelo tempo e espaço. Cabe a nós libertarmo-nos e descobrir nossos próprios caminhos.

A vida nos oferece muitas escolhas ao longo de nossa existência, menos a decisão de onde e quando iremos nascer. Obra do acaso, Deus ou qualquer outra explicação que cada um possa ter, a caixa onde nascemos influencia nossa formação e talvez, na maioria das vezes, determina nosso destino.
Nascer na periferia de uma grande cidade do terceiro mundo, fruto de uma família desestruturada, de maneira geral, produz repetições do modelo vivido. Fácil imaginar o marginal desajustado ou qualquer outro perfil não qualificado, amplamente explicado pelas teorias sociológicas.
Mesmo no caso inverso, onde o filho produzido neste mesmo ambiente, segue o caminho oposto ao esperado, tornando-se a antítese da realidade vivida, exemplo do homem sério e responsável, comemorado como prêmio do destino ou fruto de uma personalidade diferenciada, parece simplesmente a outra face da mesma moeda.
O privilegio do nascimento em uma família oposta a primeira, sob um olhar apressado, parece gerador de uma vida liberta. No entanto, a realidade também produz modelos aparentemente predeterminados. É fácil imaginar o filho esperado e também o ovelha negra negativo do primeiro.
Nos dois exemplos, os frutos parecem simplesmente limitados à repetição ou a negação de um modelo vivido originalmente. A caixa predetermina seus caminhos futuros.
Quando as experiências acima produzem comportamentos ditos negativos, ou por repetição do modelo deficitário original ou o como negação do contrário, a sociedade é rápida em explicar ou condenar o rebelde sem causa.
Mais complexa é a face positiva, normalmente aceita e até incentivada. Neste caso, o indivíduo aprisionado à caixa, fica adormecido e motivado a manter-se imóvel.
Tudo segue conforme o determinado, até que os fatos da vida apresentem àquele exemplo admirado, a decepção da perda, luto ou qualquer experiência de derrota, que desafia e normalmente desmonta o modelo aparentemente equilibrado e vencedor.
Escancarada a fragilidade do originalmente dito completo, a estrutura é questionada e por diversas vezes desaba por inteiro. O indivíduo tem finalmente a oportunidade de olhar-se no espelho e buscar seu eu, descolado do produto previsível e forjado pela experiência vivida.
Quanto mais sofrido melhor, a angustia da derrota longa e profunda dificulta o retorno ao modelo anterior, tranqüilo e acolhedor, dentro da caixa aprisionadora.
A derrota obriga ao derrotado a buscar alternativas, primeiramente seguindo o modelo original e depois, idealmente após sucessivas experiências de fracasso, obrigado finalmente a buscar novos caminhos.
Desprovido do modelo original, ao indivíduo só restam novas escolhas, mas para isso, antes necessita olhar-se e separar-se do que não é seu, mas espelho do outro, positivo ou negativo, tanto faz.
Caminhar nesta direção é uma experiência única e libertadora. O renascimento, como o original, é sofrido e angustiante, mas oferece oportunidades infinitas.
Infeliz daquele que a vida não desafiou e o manteve adormecido em um modelo de sucesso. Maldito sucesso, que quando pleno, ratifica "escolhas" previsíveis e imobiliza camadas impostas por terceiros. Neste caso, o eu verdadeiro pode permanecer adormecido por toda uma vida, sem libertar-se da caixa definida pelo tempo e espaço do seu surgimento, cabe então apenas lamentar por tudo que deu certo.

(Marcos Paim C. Fonteles, psicanalista)