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"Vida longa aos dias de sol!"

terça-feira, 20 de novembro de 2018

SOBRE O FILME: “AMORES URBANOS”




Começo citando a entrevista da diretora e roterista do filme Vera Egito, presente nos extras do filme. Ela afirma que não tinha a pretensão de retratar uma geração ou uma cidade, mas especificamente um grupo de tipos, presente nos grandes aglomerados urbanos do mundo, que segundo ela poderiam estar no Rio, São Paulo, Nova York ou qualquer outro semelhante.

Essa é uma ressalva importante, uma vez que nos alerta a não partir para generalizações, tão comuns e especialmente potencializadas nos tempos de comunicação em rede, sobrecarregadas de verdades de como são as coisas ou as pessoas. Na maioria das vezes, grosseiras normatizações de grupos específicos.


Além deste recorte, ela acrescenta que apesar de fictício, o filme inclui diversas histórias da própria diretora e de alguns amigos. A cena de abertura, quando a personagem Julia é surpreendida pelo presença da namorada oficial do seu pseudo namorado de dois anos, seria real e que tudo aquilo de fato aconteceu com uma pessoa próxima, incluindo especificidades como os amigos na sala do apartamento e a sequência com a discussão na garagem. Essa colagem de histórias traz à ficção um retrato encarnado de um grupo específico de tipos. Neste sentido, vale um segundo olhar àqueles personagens, que de alguma forma representariam na tela situações reais da rotina de alguns jovens das grandes cidades.


A crítica cinematográfica, em sua maioria, considerou o filme regular, com cotação variando entre duas e três estrelas. Os comentários mais comuns indicaram uma certa monotonia ou engessamento da câmera, ausência de profundidade e fôlego na história dos personagens, ou o falta de timing de cena [1].


Ainda nos extras, a diretora e os produtores do filme afirmam que a execução do filme teve uma clima amistoso, uma vez que a maioria da equipe de atores e técnicos já se conhecia. Algo como se o filme tivesse sido produzido como uma “ação entre amigos”, interessados na viabilização do projeto. Apartamentos, carros, figuração e até o cachorro eram de pessoas relacionadas.


Parece interessante notar que a colagem de histórias e a produção entre amigos de alguma forma deixaram marcas no filme, a monotonia da câmera e a citada ausência de profundidade dos personagens, conversam com o retrato do grupo, que o filme nos apresenta. Estilos de vida talvez desencarnados ou somente encorpados, distantes mesmo dos andróides retratados no filme Blade Runner, que cientes da morte próxima, lutam por uma saída de um destino previamente traçado [2].

Os jovens ali apresentados, parecem adormecidos na rotina do dia-a-dia, em uma vida fisicamente intensa, em baladas, eventos e bebedeiras, mas ao mesmo tempo preguiçosa à reflexão. Parece que o futuro não trará novidades, sendo apenas um presente incansavelmente repetido. A câmera engessada parece fiel aos personagens, eles se movimentam mas não se movem. Não haveria para onde ir?


Em 1995, o economista americano Robert Lucas Jr, ganhou o prêmio Nobel de economia, por conta da sua teoria sobre Expectativas Racionais [3]. Resumidamente, segundo ela, os agentes econômicos seriam de alguma forma imunes a planos econômicos heterodoxos, uma vez que previamente conhecidos seus efeitos, os agentes teriam condições de antecipar acontecimentos futuros e assim agir imediatamente. As expectativas racionais trariam o futuro ao presente, anulando as tentativas de direcionamento do mercado.


O futuro aparentemente vazio de expectativas daqueles personagens, de alguma forma também esvaziaria de sentido seus presentes? De que adianta avançar se o destino já não nos interessa?


Diferentemente das gerações anteriores com planos bem definidos pela religião, família ou trabalho, este grupo parece imune aos projetos da tradição. O dogma religioso parece não seduzir sacrifícios terrenos pela garantia de uma vida eterna à posteriori, a família antes porto seguro, hoje parece um encontro momentâneo, já sem a garantia do “até que a morte nos separe”. O trabalho, em décadas passadas, carreira segura e definida por planos ou patentes, hoje é volátil e temporário em tempos de freelas ou PJs.


Esta tribo, hoje com cerca de trinta anos, é nascente da década de noventa. Não por coincidência, quando se iniciaram os PDVs (ou planos de desligamento voluntário) nas empresas, que em muitos casos destituíram chefes de família da classe média brasileira de suas carreiras seguras e eternas. Boa parte desses jovens presenciaram a queda de seus pais ou parentes, após anos de investimento em um futuro dito garantido. Como convencer este jovem a repetir o investimento frustrado de seus pais? A ausência de uma expectativa de um futuro sedutor, limitaria os investimentos necessários no presente?


Freud, antes mesmo dos economistas, já nos falava do princípio de realidade quando o sujeito é capaz de adiar a satisfação momentânea ou aceitar infortúnios presentes, como um investimento a um bem maior mais à frente [4]. Parece que a estes jovens careceria este tal “bem maior”.


A ausência de um futuro empurra o jovem à ditadura do presente, não admite adiamentos, sacrifícios. Se nada nos aguarda, melhor gozar agora!


Esse presente desbussolado e sem futuro é carente de sustentação. Frágil ele demanda movimento, já que estacionar pode ser arriscado. Parar os exporia a fragilidades, tal como o patinador sobre o gelo fino, é preciso aumentar a velocidade e manter-se em movimento. No filme, as cenas paradas se alongam em silêncios angustiantes, na navegação pelo celular ou na maratona de séries intermináveis. É necessário manter-se ocupado [5].


A alguém acostumado às bilhões de respostas disponíveis nas pontas dos dedos diretamente perguntadas ao Google, nosso guru de bolso, não teria sentido arriscar-se em se perder por perguntas ainda não solucionadas, como: “quem sou eu?”, “de onde vim?”, “para onde vou?”, “o que faço por aqui?”. Aprofundar-se em gelo fino, sem cordas ou redes de resgate, é certeza de prejuízos intoleráveis.


Quando a profundidade se apresenta, por um acaso ou fatalidade, ela deve ser rapidamente evitada. É assim no “por favor vai embora” da cena da garagem, no telefone que toca sem parar, no “eu tô bem!”, ao fim do relacionamento de dois anos, no “foi tudo bem lá?” da estilista à Julia, recém chegada de um aborto, ou no “minha vida tá ótima, tô super bem comigo mesma, tô super bem no meu trabalho, tá tudo certo” da filha em conversa com os pais, ou no “foda-se ele” ao pai arrependido e no “se você vier me dar uma liçãozinha de moral, nunca mais eu falo com você”. Melhor o silêncio ou “eu vou cortar uma maça” e desviar-se, como faz Micaela.


Quando a realidade atravessa e parece impossível escapar, haverá sempre o entorpecente disponível e inesgotável, como Diego oferece à Julia “se acabar a bebida lá, aqui nunca falta”.


A alguém sem recursos parece difícil amar, passar à diferença, expor-se a riscos e incertezas que o amor traz consigo. Parece uma aposta impossível a quem senta na mesa de jogo, sem cacife para iniciar a primeira rodada. Amar é dar o que não se tem, já disse Lacan, mas somente poderá oferecer sua falta, quem antes chegou até ela. O que parece impossível àqueles sujeitos já saturados pelo vazio. Cabe ficar onde se consegue chegar, rasteiro no “eu pensei que você ia tentar mudar — claramente você pensou errado”, no “é pegar ou largar” ou no “ou ela te assume ou tchau” [6].


Melhor manter-se no amor fraterno, bem menos arriscado e demandante. O erótico vira cardápio e disponível quando necessário, na balada ou aplicativo, disponível a qualquer hora em qualquer lugar.

Alguém uma vez disse que o casamento nos asseguraria uma testemunha à nossa própria existência, o que não parece mais necessário a quem tem à mão as redes sociais, que nos oferecem milhares de testemunhas até a próxima wifi disponível. Quem tem redes não precisa de laços, muito menos de nós

São essas testemunhas que finalmente nos respondem: “quem sou eu?”. São elas que descobrem e aprovam nossas habilidades e talentos, confirmam nossas escolhas. Seguidores e likes nos indicam os melhores caminhos e nos liberam mais uma vez de reflexões trabalhosas. Tanta gente nos seguindo ou curtindo nossas receitas é sinal que há algo ali, melhor rapidamente corrigir o status na rede social e seguir adiante, manter o ritmo, como nos ensina a personagem Julia [7].


No fim, a maratona sem linha de chegada não oferece descanso. Mesmo no limite, quando apresentados à morte, nosso destino final e certeiro, esta é no máximo motivo de pausa, um breve abraço ou um leve choro. Não podemos esquecer que ainda estamos sobre gelo fino, é preciso manter sempre o movimento e assim seguem Diego, Julia e Micaela.






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[1] “Há uma vivacidade, um frescor na filmagem, em seu naturalismo sem exageros. (…) A contrapartida é o caráter meio raso na construção desses personagens. Pouco sabemos deles no início e pouco descobriremos ao final.” (“Jornal Estado de São Paulo”, Luiz Zanin Oricchio, 2014)

“A premissa de dramatizar os dilemas emocionais desses jovens adultos vivendo entre moda/arte/design é interessante, mas o desenvolvimento não dá conta do projeto. Falta um real fôlego descritivo para elaborar personagens menos caricatos, e falta talento cinematográfico para criar timing de cena.” (“Jornal O Globo”, Ruy Gardnier, 2014). Trechos extraídos do site AdoroCinema, link:http://www.adorocinema.com/filmes/filme-231638/criticas/imprensa/.

[2] Blade Runner é um filme de ficção científica neo-noir americano de 1982 dirigido por Ridley Scott e estrelado por Harrison Ford, Rutger Hauer, Sean Young e Edward James Olmos. O roteiro, escrito por Hampton Fancher e David Peoples, é vagamente baseado no romance Do Androids Dream of Electric Sheep?, de Philip K. Dick. (Wikipédia)

[3] “Lucas é muito conhecido pelas suas investigações sobre as implicações do pressuposto das expectativas racionais. Lucas incorporou a ideia de expectativas racionais num modelo de equilíbrio geral dinâmico. Os agentes no modelo de Lucas são racionais: com base na informação disponível, formam expectativas sobre os preços e quantidades futuro e com base nessas expectativas eles agem para maximizar a sua utilidade total esperada.” (Wikipédia)

[4] “Na verdade, a substituição do princípio do prazer pelo da realidade não significa a deposição do princípio do prazer, mas sua salvaguarda. Abandona-se um prazer momentâneo, incerto quanto a seus resultados, para ganhar, no novo caminho, um prazer seguro que virá depois.” (“Obras Completas, Volume 10, Formulações Sobre os Dois Princípios do Funcionamento Psíquico”, Sigmund Freud, 1911, p. 116)

[5] “(…) radicalmente sós, amarrados a um futuro vazio, ocupados pela alucinação permanente de um presente que não pode parar, nem pensar, e que nos é, e que simplesmente somos.” (“A Música do Tempo Infinito”, Tales A. M. Ab’Saber, 2012, p. 29)

[6] “Ela [a perversão] está hoje no princípio das relações sociais, através da forma de se servir do parceiro como um objeto que se descarta quando se avalia que é insuficiente.” (“O Homem Sem Gravidade”, Charles Melman, 2008, p. 172)

[7] “O reconhecimento segundo o ‘modelo antigo’ era adquirido de uma vez por todas: quando você se fizesse reconhecer por um certo número de qualidades, sua ‘passagem’ para um certo estatuto era admitida e definitiva. O sujeito capitalista, hoje, corre sem parar atrás desse reconhecimento, exposto a todos os acasos do futuro próprio à economia, isto é, arriscando se arruinar, ser preso, em suma, desaparecer. Estamos em duas lógicas completamente diferentes: uma fundada na assunção do traço que segura a identidade; a outra é organizada pela busca incessante das marcas de um identidade que só vale no olhar do semelhante, que só pode ser validada por um efeito de massa — reconhecimento público, midiático — e que nunca é definitivamente adquirido.” (“O Homem Sem Gravidade”, Charles Melman, 2008, p. 172)